Os trechos a seguir pertencem ao clássico
de Miguel de Cervantes Saavedra, “Dom Quixote”, edição do Círculo do Livro
S.A., São Paulo, Volume II:
“ - Também, Sancho, não metas a cada
instante nas tuas falas uma CATERVA DE RIFÕES, (caixa-alta minha), como
costumas, que ainda que os rifões são sentenças breves, muitas vezes os trazes
tanto pelos cabelos, que mais parecem disparates do que sentenças.
- A isso é que só Deus pode dar remédio –
respondeu Sancho –, porque sei mais rifões que um livro, e acodem-me à boca
juntos tantos quanto falo, que bulham uns com os outros para sair, e a língua
vai deitando para fora os primeiros que encontra, ainda que não venham muito a
pêlo; mas terei conta daqui por diante em dizer só os que convierem à gravidade
do meu cargo, que em casa cheia depressa se guisa a ceia, e quem parte não
baralha, e a salvo está quem repica os sinos, e para dar e para ter muito siso
é mister...
- Assim, Sancho – disse Dom Quixote –,
insere, enfia, encaixa rifões, que ninguém te vai à mão; minha mãe a
castigar-me e eu a desmandar-me. Eu a dizer-te que não digas muitos rifões e tu
a golfar uma ladainha deles, que entram no que estamos falando como Pilatos no
credo. Olha, Sancho, eu não te digo que seja mau um rifão trazido a propósito;
mas enfiar uma súcia de rifões a trouxe-mouxe torna a conversação descorada e
baixa.”
(Páginas 683-684.)
“ - Ó mãe – disse Sanchica –, (...) Mau
ano e mau mês para quantos murmuradores há no mundo; ande eu quente e ria-se a
gente. Não é verdade, minha mãe?
- Se é verdade, filha! – respondeu Teresa
– e todas estas venturas, e maiores ainda, mas profetizara o meu bom Sancho;
verás tu, filha, como não paras sem ser condessa, que tudo está no principiar
em ser venturoso; e, como tenho ouvido dizer muitas vezes a teu bom pai (que,
assim como é teu pai, é pai e mãe dos rifões), quando te derem a vaca, vem logo
com a corda; quando te derem um governo, apanha-o; quando te derem um condado,
agarra-o; e quando te baterem à porta com alguma boa dádiva, recebe-a ou então
deita-te a dormir, e não fales à ventura, que está fazendo truz-truz à porta da
tua casa.
- E que me importa a mim – acrescentou
Sanchica – que digam: ‘Viu-se o Diabo com botas, correu a cidade toda’?
Ouvindo isto, disse o cura:
- Na verdade, creio que esta linhagem dos
Panças nasceu toda com um costal de rifões metidos no corpo, e que os entorna a
todas as horas e em todos os lugares.
- É verdade – tornou o pajem; – e, ainda
que muitos não vêm a propósito, todavia divertem; e a duquesa minha senhora, e
o duque, apreciam-nos muito.”
(Página 730.)
“ - Sou tão desgraçado, senhor –
respondeu Sancho –, que receio que não chegue o dia em que me veja em tal exercício.
Oh! que polidas colheres eu hei de fazer quando for pastor! que migas, que
natas, que grinaldas e que pastoris cajados que, ainda que me não granjeiem
fama de discreto, não deixarão de ma granjear de engenhoso! A minha filha
Sanchica nos levará comida ao aprisco. Mas esperem lá; a pequena não é nenhuma
peste e há pastores que são mais manhosos do que parecem; e não queira que ela
fosse buscar lã e viesse tosquiada, porque, tanto nos campos como nas cidades,
andam amores de companhia com os maus desejos; e nas choças dos pegureiros
acontece o mesmo que nos palácios dos reis; e, tirada a causa, tira-se o
efeito; e olhos que não veem, coração que não suspira; e mais vale salteador
que sai à estrada que namorado que ajoelha.
- Basta de rifões, Sancho – acudiu Dom
Quixote; – um só dos que disseste é suficiente para nos fazer entender o teu
pensamento; e muitas vezes te tenho aconselhado que não sejas tão pródigo de
provérbios; mas parece-me que é pregar no deserto. Minha mãe a castigar-me e eu
com o pião às voltas.
- Parece-me – respondeu Sancho – que Vossa
Mercê é como o outro que diz: ‘Disse a caldeira à sertã, tira-te para lá, não
me enfarrusques’. Está-me a repreender e a aconselhar que não diga rifões e
enfia-os Vossa Mercê aos pares.
- Nota, Sancho – disse Dom Quixote –, que
eu trago os rifões a propósito e ajeitam-se ao que digo, como os anéis aos
dedos; mas tu, tanto os puxas pelos cabelos que os arrastas, em vez de os guiar;
e, se bem me lembro, já de outra vez te disse que os rifões são sentenças
breves, tiradas da experiência e das especulações dos nossos antigos sábios; e
o rifão que não vem de molde é mais disparate que sentença. Mas deixemo-nos disto
e, como a noite já vem próxima, retiremo-nos da estrada real um pedaço e
procuremos sítio onde passar a noite; Deus sabe o que amanhã sucederá.”
(Página 825)
“ - Nunca te ouvi falar tão elegantemente
como agora, Sancho – disse Dom Quixote; – por onde venho a conhecer a verdade
do rifão que tu algumas vezes costumas citar: ‘Dize-me com quem andas,
dir-te-ei as manhas que tens’.
- Então, senhor meu amo – redarguiu Sancho
–, quem é que enfia rifões agora? sou eu ou Vossa Mercê, a quem eles caem da
boca aos pares, ainda melhor que a mim? Entre os seus e os meus há só uma
diferença: os de Vossa Mercê virão a tempo, e os meus a desoras; mas, afinal de
contas, sempre são rifões.”
(Página 827)
“Sancho
respondeu que fizesse o que dissesse, mas que ele, por si, preferia concluir
aquele negócio com a maior brevidade possível, porque tudo está no principiar;
e não guardes para amanhã o que podes fazer hoje; e Deus ajuda a quem madruga;
e mais vale um ‘toma’ que dois ‘te darei’, e um pássaro na mão que dois a voar.
- Basta de rifões, Sancho, em nome de
Deus verdadeiro – disse Dom Quixote –, que parece que voltas ao sicut erat (Ou seja, ao princípio.); fala
claro e liso, e chão, como fazes muitas vezes, e verás que assim hás de medrar.
- Isto em mim é uma desgraça – tornou Sancho;
– parece que não sei alinhavar um arrazoado sem lhe meter um rifão. Mas eu me
emendarei, se puder.”
(Página 843)
-X-X-X-X-X-
EPÍGRAFE
“Andrea estendeu as mãos para o fogo. –
Obrigado, disse ele. Fico-lhe muito agradecido. Em Roma, veremos como correm as
cousas. Até lá, lembre-se do ditado: ‘A cada dia basta o seu mal.’
- De acordo, retrucou Belli. Eu diria
até: ‘A cada dia é demasiado o seu mal’.”
(“O Favorito dos Borgias”, Samuel
Shellabarger, Edart Livraria Editora, São Paulo, 2ª Edição, 1962, Página 209.)
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